"Vinte Mil Léguas Submarinas" de Júlio Verne, 1870
"O capitão Nemo ergueu-se e eu acompanhei-o. Abriu uma porta de dois batentes que havia no fundo do salão, e entrei numa sala de dimensões afins àquela donde acabara de sair. Era a biblioteca. Grandes estantes de pau-preto com embutidos de cobre continham nas suas largas prateleiras grande número de livros uniformemente encadernados e, seguindo o contorno da sala, iam terminar na parte inferior por dois grandes divãs, estofados de couro e recurvados para usufruto do máximo conforto. Outras estantes mais leves e portáteis, que podiam aproximar-se ou arredar-se à vontade, permitiam que os livros se movessem nelas para maior comodidade de estudo. No centro havia uma grande mesa coberta de brochuras, entre as quais se dispunham alguns jornais antigos. A luz eléctrica banhava todo este conjunto harmónico, caindo de quatro globos despolidos incrustados nas volutas do tecto. Possuído de verdadeira admiração olhava para aquela sala tão engenhosamente disposta e não podia acreditar no que via. - Capitão Nemo - disse eu ao meu hospedeiro, que se tinha estendido sobre um dos divas - a sua biblioteca nada tem a invejar à de muitos palácios e estou na verdade maravilhado quando me lembro que ela o acompanha à profundeza dos mares. - E onde se pode encontrar mais solidão e mais silêncio, senhor professor? – volveu o capitão Nemo – O seu gabinete no museu oferece-lhe, porventura, um descanso tão completo? - não, e devo acrescentar que à vista do seu é pobríssimo. O capitão tem cerca de seis a sete mil volumes… - Doze mil, Sr. Aronnax. São os únicos elos que ainda me prendem à terra. Para mim o mundo acabou no dia em que o meu “Nautilus” mergulhou pela primeira vez nas águas. Nesse dia comprei os meus últimos volumes, as minhas últimas brochuras, os meus últimos jornais, de então para cá, é como se a humanidade não tenha escrito ou pensado mais. De resto, estes livros estão à sua disposição e pode servir-se deles quando quiser. Agradeci ao capitão Nemo e aproximei-me das prateleiras biblioteca, onde abundavam livros de ciência, de ética e de literatura, escritos em todas as línguas; não vi, porém uma única obra de economia – parecia que estavam estritamente proibidas a bordo. Particularidade curiosa: todos aqueles livros estavam classificados indistintamente, fossem escritos em que língua fossem, e essa mistura provava de sobejo que o capitão do Nautilus devia ler fluentemente os volumes que as suas mãos agarravam ao acaso. Entre aqueles livros notei obras-primas dos mestres antigos e modernos, isto é, tudo a humanidade tem produzido do melhor na história, na poesia, no romance, e na ciência; desde Homero até Victor Hugo, desde Xenofonte até Michelelt, ddesde Rabeialis até Georges Sand. Mas o maior investimento daquela biblioteca tinha sido nas obras científicas: livros de mecânica, de balística, de hidrografia, de meteorologia, de geografia, de geologia, etc. ocupavam um lugar não menos importante que as obras de história natural, e concluí, portanto, que essa era a leitura dilecta do capitão. Aí observei as obras completas de Humboldt, todas os de Arago, bem como os trabalhos de Foucault, de Henry Sainte-Claire de Deville, de Chasles, de Milne-Edwards, de Quatrafages, de John Tyndall, de Faraday, de Berthelot, do padre Secchi, de Petermann, do comandante Maury, de Agassiz, etc, mais as memórias da Academia Francesa de Ciências, boletins das diversas sociedades de geografia, etc., e, num dos lugares mais evidentes, os dois volumes sobre as grandes profundezas do oceano, da minha autoria, que me tinham possibilitado talvez aquela recepção relativamente benévola do capitão Nemo."
Tradução do BeP efectuada a partir da versão inglesa de F. P. Walter
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